Este texto intenciona dar luz ao tema do suicídio de uma maneira muito particular. Embora completamente marginalizado, o tema suicídio tem hoje uma estrutura de aprofundamento amparada por literaturas, estudos científicos, palestras, grupos de apoio, tanto para pessoas potencialmente em rota do autoextermínio quanto para sobreviventes enlutados.
Este relato é quase que um testemunho que vai além do ato em si de quando um ser humano decide, por conta própria, terminar sua passagem neste plano existencial. Me refiro a um ser humano em especial que exercia naquele momento fatal vários papeis: filho, marido, pai, funcionário, amigo etc. Embora eu esteja diretamente envolvido com o doloroso desfecho por me encaixar na ramificação “filhos” de sua função social, tive a pretensão de me posicionar a parte de toda a carga emocional dessa história e observá-la do ponto de vista do ser humano que cometeu suicídio a mais de 50 anos atrás, quando o tema era considerado muito mais tabu do que na atualidade.
Embora muitos possam pensar ao contrário, minha visão sobre o caso, ainda que como testemunha ocular, nunca passará de limitada e fragmentada porque a verdade pura e incontestável do que se passava na mente daquele homem para que tivesse tomado aquela decisão morreu e foi entrada junto com ele naquele mês de março de 1971.
Depois de sua morte não houveram conversas a respeito, o que é muito mais normal do que se pensa em casos de suicídio na família. Igualmente, não houve da minha parte uma investigação mais apurada do caso para que eu pudesse escrever esse texto objetivando um tom de narrativa de fatos, essa não é a minha intensão na verdade. Cinquenta e três anos depois de uma vida que na verdade começou aos 12 anos de idade, abro o meu coração juntando pedaços de informações que tenho ou até mesmo que presumi ou inventei. Percebi em minhas interações de aprofundamento sobre o tema que a angústia da busca por dados, informações e justificativas amplifica e eterniza a dor transformando o luto dos que ficam em um doloroso estado de espírito vitalício.
Meu verdadeiro objetivo foi trazer à tona a possibilidade de encerrar esse ciclo com aquilo que tenho e mais do que isso, entender no que me transformei, como reajo e como enxergo o mundo a partir daquela tragédia.
CASE: ONDE ESTÁ O CHEQUE?
Na Empresa
Na área administrativa do setor de vendas de uma grande indústria na cidade do Rio de Janeiro no início da década de 2010 trabalhava uma jovem senhora assistente. Uma de suas tarefas era receber os cheques que haviam sido coletados por vendedores em visita a clientes pela cobrança das faturas correspondentes às vendas concretizadas. Um determinado dia, surgiu a situação do desaparecimento de um cheque o qual o cliente comprovava ter dado em mãos a um dos vendedores. Criou-se então um clima de suspeita em cima do vendedor como se ele tivesse usurpado o cheque para benefício próprio. Essa assistente estava diretamente envolvida no caso e começou a buscar orientação de qual seria a atitude da empresa diante do ocorrido. Foi então que ao conversar com um outro vendedor muito antigo na casa, escutou o seguinte comentário: “eles não vão fazer nada com ele (vendedor) porque não querem correr o risco da repetição de uma tragédia antiga em que um outro rapaz nessa mesma situação tirou a própria vida”. Ela ficou em choque porque, embora ninguém soubesse disso, essa assistente de vendas era sobrinha de um vendedor daquela mesma empresa que teria se suicidado de 40 anos antes. Ela então pediu para conversar com mais detalhes mais tarde com aquela pessoa. Nessa conversa, a qual foi conduzida com um tom de algo que deveria ficar em segredo, constatou que se tratava mesmo de seu tio que havia tido também um cheque de sua responsabilidade desaparecido e que a empresa teria feito muita pressão em cima do vendedor e por fim tomado a decisão de demiti-lo por justa causa. O detalhe ressaltado por seu informante é que esse tal cheque nunca teria sido descontado no fim das contas e que o vendedor acusado cometeu suicídio dias antes da data do seu desligamento.
40 anos antes
Exatamente no início do ano de 1971, um vendedor de uma grande indústria no Rio de Janeiro, apresentava uma mudança perceptível de comportamento. Com um olhar distante, tonturas e quedas inexplicadas começou a fazer exames clínicos buscando detectar alguma patologia cerebral, no entanto, os exames nunca comprovaram nenhuma anomalia. Havia algo guardado em segredo causador de seu sofrimento, situação que estaria chegando a um limite insuportável embora ninguém em sua casa pudesse entender o que estava se passando. Presume-se que a partir de um determinado momento esse vendedor começou a traçar seu plano de pôr fim àquela dor.
O Plano e a Execução
Em um dos almoços típicos de domingo de mesa grande, o vendedor puxou o assunto com seu sogro a respeito de uma arma de fogo que ele, possuía pedindo para que a mostrasse. No final da refeição, seu sogro levou-o até seu quarto, puxou uma caixa de cima do armário e mostrou onde guardava a pistola e munição. O assunto esgotou e o objeto voltou para o mesmo local.
Em algum momento entre esse dia e o desfecho, ele, o vendedor, voltou ao quarto onde se encontrava aquela caixa e se apoderou do que seria o antídoto derradeiro para toda a sua angústia. Em um domingo, a noitinha, quando seus dois filhos já se preparavam para dormir, o vendedor entrou no quarto e se postou de pé em frente aos 2 meninos, e proferiu a seguinte frase em forma de ordenamento: “quero que vocês estudem para serem grandes homens”. Os dois garotos escutaram aquilo e foram dormir sem ter a menor ideia do que estava por vir. Quando a casa silenciou adormecida, escreveu uma carta sobre bens materiais e uma vaga e enigmática justificativa para o seu ato. No banheiro dos fundos, ao lado do quarto de sua mãe ele deu um tiro na cabeça. Foi socorrido e levado às pressas ao hospital, mas como era de se esperar, não resistiu e morreu.
O vendedor, Sr. Laudio Nogues, era meu pai, o mesmo que segundo a história contada, com muita ressalva, pelo antigo empregado da empresa, havia se matado há 40 anos por conta de uma postura punitiva inflexível imposta pelos gestores daquele momento. Esse teria sido, segundo o relato, um trauma imensurável que marcou por muitos anos a história daquela empresa.
O outro lado da história conheço muito bem, as transformações e os traumas vividos por uma família desfigurada e que ainda vive o infindável luto do suicídio.
Sofrimento e Obscuridade
Um aspecto que aprendi típico dos casos de suicídio é a obscuridade. Ele sofreu sozinho o tempo todo sem coragem de dividir com ninguém o que estava passando. Minha mãe, enquanto viva, nunca conversou com seus filhos a respeito do assunto. Tomei conhecimento dessa situação do cheque décadas depois do ocorrido em 1971, ninguém nunca havia trazido esse fato antes então, naquela altura da vida, decidi não abrir esse baú de sofrimento com minha mãe.
Somente hoje, após tendo me aprofundado no tema do autoextermínio, obtive a consciência do aspecto multifatorial por trás da decisão de quem tira a própria vida, no entanto o episódio na empresa tem um peso de extrema relevância no ato tendo em mente que o gatilho foi acionado na intenção de evitar o humilhante processo de demissão por justa causa.
As seguintes intenções são presumidas:
Evitar a imensa vergonha de ser um pai de família taxado de ladrão e com dificuldade de encontrar outro emprego por ter sido demitido por justa causa;
Evitar que seus filhos o vissem como um homem fracassado e perdedor;
Quando proferiu a frase final aos seus filhos, talvez estivesse passando o bastão de uma missão que ele julgasse ter fracassado, missão essa que provavelmente ele próprio tenha sido cobrado a vida toda;
O tempo passou e o menino de 12 hoje está sexagenário com uma história de vida construída em cima dos alicerces fincados por um momento tão marcante no início de sua vida.
Estou convicto que nesta etapa da vida, partindo da visão expandida transpessoal em adição a todo um passado de experiências profissionais, ainda há muito o que contribuir. Trazer a possibilidade de um convívio empresarial revestido pela grandeza de uma atitude desprendida das amarras exclusivamente materialistas dirigidas pelo ego e pautadas pela ganância e medo. Agindo assim, talvez tenha encontrado a direção da verdadeira grandeza não detalhada por meu pai na época ao mesmo tempo que darei a singela contribuição para evitar que outros, fiquem privados da presença de seus entes queridos em busca de pôr um fim em seus sofrimentos profundos saindo definitivamente de cena através do ato desesperado de autoextermínio.
Laudio Nogues Filho
Comments